Purga




Adormeço agarrada as memórias que têm o teu cheiro , aperto-as com tanta força como aquela que me sufoca quando me apercebo do que estou a fazer.
Outra vez.
A culpa faz-me fraquejar mas a minha humanidade compadece-se , acalma-me e sussurra              "Não fiques triste " .
E nestes diálogos internos , um olho fechado que quer ver-te , outro aberto ciente do escuro da tua ausência , vou relaxando um pouco a mão .
E escrevo-te menos. Penso -te menos.
Respiro melhor , como melhor e estou mais presente nos segundos que desperdiço .
Faço mais. Automatizo-me .
Olho-me ao espelho e a minha beleza contraria-me , duvida .
Será que foi só a minha pele ?
Talvez os olhos carentes , os lábios entre abertos , os cabelos despenteados me tenham tornado irresistível e fácil .
Compreendi-te mal , caçei gambuzinos , adentrei o vale dos sonhos encantados , imaginei contos de fadas e um Rei.
Escavei por amor iludido e soterrei-me .
Tanto na vida que perdeu sentido.
Nunca tive grande direção mas saltitava , entre cá e lá, equipada de esperança, que ia sempre sentir , ver , aprender algo novo , algo excitante...e isso era suficiente.
Era suficiente ir caminhando sem destino.
Soterrei-me e tudo mudou.
A soturna realidade prende -me, não me quer deixar andar, brincar , ser feliz , ser ignorante .
Os meus medos enraizaram-se , as minhas perdas metastizaram-se , as pessoas marcaram-me .
Sou uma boa pessoa mas não me sinto como uma.
Pairo sem corpo num limbo que me promete chegar a ti.
Sou sempre atraiçoada por fantasmas.
Quero hibernar , quero desresponsabilizar-me , quero ter direito a ser fútil e leviana.
Quero destruir tudo pelo qual me esforcei, manchar o meu nome , desrespeitar a minha dignidade .
Não quero perdoar .
Porque me abandonas ainda hoje Pai?
Porque não me abraças ainda hoje Mãe?
Porque não me amas ainda hoje Homem ?
Porque é que me importo ? Porque não parto ?
Porque aceno adeus por horas e mato-me mais por dentro se não quero que vás embora.
É aqui que a minha mão volta a fechar-se e que as unhas se ferram na pele e o aperto no peito é tão real como o vomito de palavras que precisam ser escritas .
Não tenho pena de mim , não tenhas também.
O que tenho é uma real necessidade de compreender para lá do visível , do fácil e mundano .
Porque é que as pessoas amam-me mas não me escolhem,
porque não existe ordem ou justiça . " É como é" , é um mantra que tento, repito, tento, repito.
Até que me deito e o sono não me quer e então eu vou buscar a verdade e magoou-me tremendamente por ela.
Custa-me caro.
Porque apareces sempre.
E vejo-te sem olhos, sinto-te sem forma, cheiro.te sem odor, beijo-te sem boca.
Diariamente morro para encontrar um novo caminho.
E temo que ele não exista.
Nem tu.
Nem mais ninguém.




Sarah Moustafa

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