Dissolvência- Capitulo XII Ascendência




Capitulo XII

Ascendência



Do que nascemos? Que matéria única e especial nos permite uma impressão digital única, extremamente única, irrepetível em todas as outras milhares, zilhões, de impressões em vida, numa vida que se extrapola em diferença na junção?
Que material nesta Terra é capaz de ser tão individualizado, tão particular que nos alcança na colectividade?
Que poder será esse que comporta tanta expressão, chegando a todos, num aprimoramento tamanho de uma constante evolução?
Que força é essa que nos matiza a pele e marca os ossos, num esqueleto que nos sustenta no seu indecifrável mistério?
Que olhos são os nossos, e que vitrais resplandecem, numa entrada e saída, numa câmara secreta, subterrânea que nos molda ao fascínio da exaltação, numa miríade sobrenatural presente nesses olhares?
Há um grito que eclode no momento que nascemos e nos abre á sua imagem.
Há uma fotografia que é tirada num instantâneo perpétuo, numa tatuagem sem tinta, nas golfadas de ar de um universo que nos baptiza o corpo, sem de imediato se revelar.

***
Estava mais uma vez sozinha, encarcerada entre paredes incógnitas, entre uma vida que continuava a sua espiral de repetições constantes, circundando o corpo nos seus anelos cada vez mais apertados.
Percorrera todos os cantos daquela mansão e mesmo assim tinha a certeza que não tinha visto tudo, jurava que, se não estava demente, a percepcionava a aumentar á medida que caminhava pelos sombrios corredores.
 Não sabia o que a fazia ter essa percepção, provavelmente o tempo de reclusa e a falta de ar puro nos pulmões, seriam uma explicação aceitável, mas sentia-o, e aprendera que do mal ao menos as suas intuições eram fortes.
Talvez por isso não estivesse de novo apavorada, talvez por isso não custara assim tanto a ausência de Isaac naquele espaço. Custava-lhe mais a curiosidade, a insaciável necessidade de ver as suas questões respondidas e a sua não obtenção, a sua recusa em dar-lhas causava-lhe apenas um frenesim tamanho.
Ter demasiado tempo entre os ponteiros que assinalar prejudicava-a, apenas a fazia adensar as dúvidas e os pensamentos sobre essas mesmas incertezas.
Pensava em Débora e Nicole, mesmo evitando fazê-lo, pensava em Gabriel e na morte que ainda não lhe assentava, pensava na sua tentativa de lhe ir ao encontro e como ali tinha acabado… num mistério que abria as fendas da terra e a submergia numa queda cada vez mais profunda.
Chorar já não conseguia. 
Gastara o canal lacrimal na totalidade das últimas 48 horas, que já deviam ir a caminho de tantas outras, sentia-se moribunda, exausta necessitada de um sono que não sendo perpétuo teria de ser seu semelhante. Precisava do silêncio que aquele Homem sombrio lhe aludira, precisava apenas de se reclinar no regaço de algum conforto.
O choro miúdo despertou-a da letargia em que encetara. Olhou em redor tentado perceber de onde este poderia vir.
Caminhou confusa sentindo o pranto agonizar-se num suporte que não conseguia conceber.
Sentia as convulsões da ansiedade apossa-la no desenfreio em que ia abrindo porta atrás de porta, sem nada encontrar.
Sentia-se prestes a ensandecer á medida que as lágrimas lhe vertiam o sufoco da exaustão.
A trovoada eclodiu lá fora exteriorizando o pânico que o momento insurgia, relampejou iluminando em brevidade toda a gigantesca cúpula e nesse instante em que se voltou notou a forma de algo no canto do chão disposto, quieto na pacificidade mórbida em que o choro moribundo se silenciara.
Jade manteve-se estática puxando os cabelos para trás negando a si mesma uma nova possibilidade de terror. Não podia suportar mais peso além daquele em que já se afundara.
Preencheu-se de coragem caminhando vagarosamente na direcção do que pensava ter visto.
Sentia a força da chuva grossa que desaguava lá fora, o sibilo intenso da mesma plenificava o vazio por onde ia.
Sentia medo do que poderia ver e sentia-o também na probabilidade de nada ser, atestando-lhe a demência que esperançava não reconhecer.
Limpou rapidamente o rosto molhado tentando por tudo despertar-lho da névoa que mal formaria o que queria, ou não, limpidamente ver.
Os joelhos cederam sem dificuldade sentindo a dor ténue mas perceptível do choque em declínio entre o chão e o embate que sentiu na alma.
Afastou a coberta do mistério e previu toda a sua plenitude a estreitar – se no reflexo dos olhos que a expectavam de volta.
 Viu-se no pressentimento e confirmou-o no grito aterrador do horror que a valia. Era ela, o corpo frágil de quem acabara de nascer e matar a própria mãe no processo. Era ela no símbolo dos olhos mergulhados que apenas a sua contiguidade poderia alguma vez reconhecer.  
Afundou-se no grito mútuo que as sucumbiu na história de um passado identicamente presente.
A inconsciência apossou-a de memórias impressas que nunca quis ler. Petrificou olhando apenas no breu o eco dos seus próprios olhos e a sombra do seu corpo dividido.
Fechou-os e sentiu que ela os fechara também como uma despedida pronta a um novo recomeço.
Voltou a gritar e quando os abriu já não era a ela mesma que contemplava mas o absoluto vazio do nada que Isaac diante de si protelava.
Não se sobressaltou ao despertar da sua conspecção fantasmagórica. Como poderia ter medo do pesadelo se fora dele que fora criada?
- Bem Vinda Jade….
Percepcionou as palavras que ele proferia, sabendo que este sabia o pico da ascendência e decesso em que voltaria a desfalecer.
Isaac segurou-a como se apenas de uma pluma se tratasse, olhou-a completamente embrenhada num sono pacificador.
O peso já não a segurava mais.


 Sarah Moustafa








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